quarta-feira, 18 de junho de 2008

Olhos nos Olhos

Há alguns anos deixei essa música de Chico Buarque guardada em uma gavetinha do meu cérebro que raramente abro. Mais eis que outro dia em um jantar, a escutei e recordei sua beleza surpreendente.

Mas não, não se aflija, não vou cair na conversa sobre o quão lindo, sensível e compreendedor das mulheres é o Chico Buarque. Sobre isso pouco me importo. Já caí nesse chavão uma vez e agora me canso dele.

Fiquei pensando sobre uma conversa que tive há muito tempo atrás. Gustavo tinha um violão numa festa em casa de Sara e se pôs a tocar a tal música, cedendo aos meus pedidos (feito quase raro, não é sempre que Gustavo se propõe a tocar uma música escolhida por outra pessoa).

Na época cantávamos juntos em uma banda “cover” de Chico Buarque. Era divertido.

Mas enfim, na tal festa, ao terminar de cantar a música, pusemo-nos a debater sobre o significado de sua letra. Quem estaria sendo retratado pela letra da música, quem seria o verdadeiro interlocutor e o que exatamente estaria tentando dizer com frases tão fortes?

Seria uma mulher refeita de fato? Lembro que defendi essa opinião, achando que a letra retratava a vingança da mulher largada e amargurada, porque afinal de contas, “os homens sempre querem voltar e quando isso acontece a mulher já está pronta para dizer um gostoso não”. Pensava que a música era sobre esse deleite feminino e defendi ardorosamente esse ponto de vista, apoiada na frase chave da música, “Quando talvez precisar de mim/Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim”. Bobinha eu. Não percebi que esse argumento perde força com várias outras frases da música, como “Quando você me quiser rever/Já vai me encontrar refeita, pode crer”. Ninguém que está refeito de fato vai sair gritando aos quatro ventos, porque quem está recuperado de fato não precisa mais disso. Percebi que a música toda ainda tem muita paixão, muitos sentimentos, que certamente não são de uma pessoa que superou totalmente a perda de um amor. Aliás, será possível superar totalmente tal perda? Talvez uma vez que você deu parte de seu coração a alguém, essa parte nunca mais possa ser recuperada. É da outra pessoa pra sempre.

Surgiu o argumento de que talvez a pessoa que estava dizendo as palavras da música fosse uma mulher recalcada, que quer se mostrar muito bem mas que no fundo ainda está muito magoada e por essa razão quer magoar seu antigo amante. Achei esse um bom argumento, que fazia mais sentido que o primeiro e dessa vez o argumentador se reforçava com várias frases da canção. “Quero ver como suporta me ver tão feliz” poderia ser traduzida em “estou me passando por muito feliz só pra poder te machucar” e “quantos homens me amaram bem mais e melhor que você” teria como sua equivalente “não amei mais ninguém desde que você partiu, mas vou fingir o contrário”.

Afinal, uma mulher totalmente refeita foi uma mulher que teve que aprender a lidar com a morte de uma pessoa viva, uma mulher que teve que aprender a viver sem aquela pessoa da qual precisava para respirar, para ser mulher. Uma mulher totalmente refeita teve que se reinventar e redescobrir o que é viver. E quando uma mulher passou por tudo isso, ao reencontrar aquele amor perdido, será como reencontrar uma parte do seu corpo que lhe foi amputada e que agora lhe é inútil pois ela já aprendeu a viver sem. Pra uma mulher, ao reencontrar um amor perdido, talvez haja o esboço de um carinho, talvez até uma ponta de tristeza, por ter percebido que aquele amor não era tão imprescindível assim. Pra uma mulher refeita de fato, as palavras dessa canção não fazem sentido pois não parecem vir de uma mulher refeita de fato.

Foi então que Saulo lançou um argumento sobre o qual eu nunca havia sequer jamais imaginado possível e refutei logo de cara. Ele jogou “e se essas palavras tivessem sendo ditas por um homem?”. Não, não pode ser! Foi o meu primeiro impulso, a letra é tão feminina. E durante toda aquela noite continuei negando tal possibilidade.

Mas vocês sabem, toda dura verdade demora até ser admitida e tive que ficar pensando sobre esse argumento durante muito tempo até me convencer de que não há melhor explicação. É claro! Na verdade, as palavras não são o que o homem diz, mas o que o homem escuta da mulher. Veja bem, o que o homem escuta, não o que a mulher disse de fato. Mas talvez tenha sido dessa forma que as palavras ditas pela mulher chegaram ao ouvido do homem. Talvez essa tenha sido sua interpretação, ao ouvir a mulher refeita de fato. E se pensarmos bem, nada mais masculino do que “tantos homens me amaram bem mais e melhor que você”. Não consigo imaginar uma mulher refeita de fato dizendo essas palavras, simplesmente porque não há necessidade. Mas consigo imaginar o homem ouvindo essas palavras, pois esse é um assunto que vai direto em seu orgulho masculino.

Enfim, não quero entrar no clichê homem versus mulher, mas é verdade que os homens têm características em comum. É como um amigo me disse uma vez: “Há um modelo de beleza feminina que todos os homens idealizam, já a mulher não tem um padrão de beleza masculina”. Frase essa que também refutei no começo mas à qual tive que me render depois de muitas observações confirmando-a. Infelizmente. Há certos estereótipos que têm razão de ser.

Mais do que isso não sei. Só sei que achei Saulo genial por sua sacada e me dei conta de que talvez o Chico Buarque não seja um entedor da alma feminina como dizem muitos. Mas é um ótimo compositor.

4 comentários:

Mariana disse...

Helena,

Absolutamente fascinante essa sua reflexão! Faz todo sentido! Eu sei que quem teve a sacação foi o Saulo, mas quem soube escrever sobre ela de forma linda desse jeito foi você. Muito legal! Amei!
Beijos

Mariana disse...

Ah! Só pra esclarecer... Sou eu, a Mari do Nando.

:0)

Barbara Kahane disse...

ótima reflexão... acho que o melhor da música, como o melhor de Chico, é que qualquer uma das interpretações servem, depende de como você ouve. Já passei pela fase magoada de ouvir a música e me convencer que era sobre uma mulher recuperada; já passei pela fase de resignação e entendi perfeitamente que aquela mulher não se recuperou de absolutamente nada; e já olhei para trás, percebendo como o sofrimento ficou em um tempo distante que parece outra era e rindo de todos os meus exageros também percebi que as palavras da música dificilmente viriam de uma mulher.... a chave da música, de uma maneira ou de outra, é o título... olhos nos olhos é uma prerrogativa para se ser absolutamente sincero, quando você pede que alguém te olhe nos olhos você está oferecendo e exigindo um discurso "sem mentiras e/ou falsidades"... mas a letra da música, não importando quem está cantando, oferece uma infinidade de
falsas impressões... é como se quem canta falasse "eu posso te convencer que o que eu estou falando é verdade apesar das palavras denunciarem sistematicamente que não"... a VERDADE que vai mostrar pro carinha que a mulher está em outra vem dos olhos, porque o discurso é realmente fraco... hoje em dia ouço a música e acho que aí está a genialidade (ui!) dela.. mas enfim... é sempre bom pensar em Chico.... beijos helena!

Mariana Kaufman disse...

escutada desde sempre parece que as palavras perderam a separação e se tornaram um grande som, bonito, emocionante e cheio de dor. acho que isso sim, cheiodedor o chico quis dizer, né? (amei toda a filosofia... chicopanopramanga: )